A incurável "doença" da escrita - Hipergrafia
Nos últimos
anos a tecnologia possibilitou identificar no cérebro as regiões responsáveis
por muitas funções intelectuais. Mas será possível aperfeiçoar esse
conhecimento? Será possível identificar, por exemplo, uma área responsável pelo
impulso que leva uma pessoa a escrever?
Esta foi a pergunta que se
fez a neurologista americana Alice Weaver Flaherty, da Universidade Harvard, e
que procurou responder no livro The midnight disease: the drive to write,
writer’s block, and the creative brain (A doença da meia-noite: o impulso para
escrever, o bloqueio do escritor, o cérebro criativo). Sua motivação era, antes
de mais nada, pessoal. Pouco tempo depois de dar à luz gêmeos prematuros que em
seguida faleceram, ela sentiu um desejo irresistível de escrever, e sobre
qualquer coisa. Um ano depois, novo parto; de novo gêmeos, que desta vez
sobreviveram, mas de novo o incontrolável impulso da escrita.
Hipergrafia é o termo médico
para descrever essa situação, conhecida há muito tempo: o poeta romano Juvenal
falava, no primeiro século d.C. da “incurável doença da escrita”. Recentemente
constatou-se que a hipergrafia é freqüentemente desencadeada pela epilepsia do
lobo temporal, e que às vezes está associada à doença bipolar, na qual a mania
se alterna com a depressão, sendo que os antidepressivos conseguem “estancar” o
fluxo verbal. O impulso para escrever parece originar-se no sistema límbico –
conjunto de células cerebrais associadas à emoção – e transformado em idéias
“editadas” pelos lobos temporais. Alguns portadores de hipergrafia tornaram-se
famosos. O pastor americano Robert -Shields manteve, de 1972 a 1997, diários
que retratavam sua vida minuto a minuto e que encheram 94 caixas de papelão num
total de 75 mil páginas, o suficiente para dar uns 4 mil livros de porte
razoável. Virginia Ridley, da Geórgia, escreveu menos, 10 mil páginas, mas o
seu texto foi mais útil: quando ela morreu de forma misteriosa, serviu para
absolver o viúvo, acusado de assassinato (problema deve ter tido a polícia para
ler tantas páginas).
E também existem escritores
prolíficos, aqueles que escrevem muito. O que não é necessariamente um sinal de
talento. A lista dos autores mais
produtivos do mundo inclui nomes absolutamente desconhecidos para a maioria dos
leitores, como o da sul-africana Mary Faulkner, que, diferente daquele outro
Faulkner – o William – não ganhou o Nobel mas está em primeiro lugar na lista de
recordes do Guiness, como autora de 904 livros; Lauran Paine, autor de 850
publicações; e Prentiss Ingraham que publicou 600 obras, das quais 200 sobre o
cowboy Buffalo Bill. Mas na lista também estão os reputados Georges Simenon,
criador do Inspetor Maigret (mais de 500 livros) e John Creasey, autor de
conhecidos thrillers. Prolíficos foram também Charles Dickens, Honoré de Balzac
e Victor Hugo. Segundo Shakespeare, autor razoavelmente fecundo, há mais coisas
entre o céu e a terra do que alcança a nossa vã filosofia. O mesmo se pode
dizer do processo criativo.
Autor: Moacyr Scliar
Texto publicado no site: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_incuravel_-doenca-_da_escrita.html
Setembro de 2006.
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